terça-feira, 6 de abril de 2010

o meu pai





o meu pai partiu para outro mundo

foram nove meses para nascer

e nove meses para morrer


na sua lápide, a seguir ao nome, está escrito:

brilhando numa estrela



o meu pai agora tem o tempo todo

eu tenho momentos

tenho sensações de equipas contrárias a tomar conta de mim

tenho também movimentos de contabilidade emocional

reorganização dos ficheiros mentais. É muito, como dizer?, é um pouco

surreal

preciso de uma pausa, gotas, gramas, fios de silêncio

sim tenho momentos

de bastante intensidade. A fatia que mais me custa digerir

é feita deste pensamento: podia tê-lo compreendido mais

aproveitado mais a sua presença

às vezes sinto a culpa desse crime mas

fiz o melhor que sabia: ele também


tenho momentos

tenho boas lembranças tenho praias inteiras com ondinhas

que fazem cócegas positivas

ao desembrulhar a maré deste processo de fim princípio fim princípio

apesar de tudo, sinto alguma paz nas têmporas

consigo aceitar as coisas bicudas como elas se apresentam

cresci por dentro, Aprendi a olhar para o meu pai de outra maneira

para a minha mãe também a minha mãe mergulhada

numa dedicação inabalável, inultrapassável

acabou totalmente esgotada, esbatida

no corpo e na cabeça


depois das marés vivas, com os nossos braços lado a lado

recomeçou a nascer


o meu pai conseguiu realizar um grande desejo:

que tudo se harmonisasse à sua volta

foi duro de bem duro o curso do rio até ao momento da morte

parecia-me que a geografia do mundo estava toda desgarrada

talvez por causa da aflição


a partir do momento em que ele levantou o trem de aterragem

e subiu

seguiram-se coisas muito bonitas, minutos cintilantes, fotografias

de uma família mais unida. Mais unida


estávamos todos mais próximos, mais humildes, mais belos

como uma planta a ganhar uma nova flôr


o meu pai deve estar contente por essa grande obra de jardinagem


No velório, antes da romaria ao cemitério

a minha irmã reuniu a humanidade inteira, os quatro filhos

alinharam-se aos pés do pai

e ela tremeu palavras escritas com a boca :

tudo o que tinha recebido daquele ser maravilha;

de como um pai tinha contribuído para a formação do carácter de uma filha

foi impressionantemente bonito, simples e acertado


Eu falei do tamanho da minha sorte

por ter escolhido este pai, e esta mãe, falei do tempo

que precisei

para reconhecer algumas das suas grandes qualidades

foi bom prestar-lhe esta homenagem familiar

recheada de verdade e gratidão


Depois do funeral a minha mãe ofereceu um almoço à família, em honra do meu pai. Estivemos a brindar e foi curioso observar o bom ambiente, apesar da nostalgia. Lembrámos muitas das peripécias típicas dele, muitos episódios cómicos, outros doces, que rechearam a sua vida. Depois fomos para casa e continuámos nesse convívio saboroso.

Nessa altura também foi preciso decidir sobre a frase na lápide mas não encontrávamos solução. A minha irmã disse que ía sonhar e no dia seguinte teria a solução. Assim foi.


Bento Correia Condeça

05.04.1929 - 09.01.2010

Brilhando Numa Estrela


o meu pai partiu para outro mundo

acabou os seus dias na terra; sempre em casa agasalhado

na companhia e nos cuidados do seu grande amor, vinte e quatro horas por dia

e no momento de partir tinha à cabeceira

a filha mais velha e o filho mais novo.


Aleluia





1 comentário:

Renato Filipe Cardoso disse...

Gutural, como um dardo de saliva. A vida, essa, é uma escrita de aflição técnica desnecessária. Que o amor não tem gramática. Digo, a alma não tem pontuação.