o meu pai partiu para outro mundo
foram nove meses para nascer
e nove meses para morrer
na sua lápide, a seguir ao nome, está escrito:
brilhando numa estrela
o meu pai agora tem o tempo todo
eu tenho momentos
tenho sensações de equipas contrárias a tomar conta de mim
tenho também movimentos de contabilidade emocional
reorganização dos ficheiros mentais. É muito, como dizer?, é um pouco
surreal
preciso de uma pausa, gotas, gramas, fios de silêncio
sim tenho momentos
de bastante intensidade. A fatia que mais me custa digerir
é feita deste pensamento: podia tê-lo compreendido mais
aproveitado mais a sua presença
às vezes sinto a culpa desse crime mas
fiz o melhor que sabia: ele também
tenho momentos
tenho boas lembranças tenho praias inteiras com ondinhas
que fazem cócegas positivas
ao desembrulhar a maré deste processo de fim princípio fim princípio
apesar de tudo, sinto alguma paz nas têmporas
consigo aceitar as coisas bicudas como elas se apresentam
cresci por dentro, Aprendi a olhar para o meu pai de outra maneira
para a minha mãe também a minha mãe mergulhada
numa dedicação inabalável, inultrapassável
acabou totalmente esgotada, esbatida
no corpo e na cabeça
depois das marés vivas, com os nossos braços lado a lado
recomeçou a nascer
o meu pai conseguiu realizar um grande desejo:
que tudo se harmonisasse à sua volta
foi duro de bem duro o curso do rio até ao momento da morte
parecia-me que a geografia do mundo estava toda desgarrada
talvez por causa da aflição
a partir do momento em que ele levantou o trem de aterragem
e subiu
seguiram-se coisas muito bonitas, minutos cintilantes, fotografias
de uma família mais unida. Mais unida
estávamos todos mais próximos, mais humildes, mais belos
como uma planta a ganhar uma nova flôr
o meu pai deve estar contente por essa grande obra de jardinagem
No velório, antes da romaria ao cemitério
a minha irmã reuniu a humanidade inteira, os quatro filhos
alinharam-se aos pés do pai
e ela tremeu palavras escritas com a boca :
tudo o que tinha recebido daquele ser maravilha;
de como um pai tinha contribuído para a formação do carácter de uma filha
foi impressionantemente bonito, simples e acertado
Eu falei do tamanho da minha sorte
por ter escolhido este pai, e esta mãe, falei do tempo
que precisei
para reconhecer algumas das suas grandes qualidades
foi bom prestar-lhe esta homenagem familiar
recheada de verdade e gratidão
Depois do funeral a minha mãe ofereceu um almoço à família, em honra do meu pai. Estivemos a brindar e foi curioso observar o bom ambiente, apesar da nostalgia. Lembrámos muitas das peripécias típicas dele, muitos episódios cómicos, outros doces, que rechearam a sua vida. Depois fomos para casa e continuámos nesse convívio saboroso.
Nessa altura também foi preciso decidir sobre a frase na lápide mas não encontrávamos solução. A minha irmã disse que ía sonhar e no dia seguinte teria a solução. Assim foi.
Bento Correia Condeça
05.04.1929 - 09.01.2010
Brilhando Numa Estrela
o meu pai partiu para outro mundo
acabou os seus dias na terra; sempre em casa agasalhado
na companhia e nos cuidados do seu grande amor, vinte e quatro horas por dia
e no momento de partir tinha à cabeceira
a filha mais velha e o filho mais novo.
Aleluia
1 comentário:
Gutural, como um dardo de saliva. A vida, essa, é uma escrita de aflição técnica desnecessária. Que o amor não tem gramática. Digo, a alma não tem pontuação.
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