domingo, 29 de maio de 2011

porque sim









ou porque sim

ou porque lhes dói a a alma

ou porque têm medo

ou porque lhes pisaram um pé

ou porque um cão lhes rosnou de manhã

ou porque não sabem se vão receber ordenado nesse mês

ou porque o gato por vezes não lhes liga nenhuma

ou porque não gostam de se ver ao espelho

ou porque ouviram alguém a dizer mal

ou porque sonharam demasiado nessa noite

ou porque desconfiam da sinceridade da cara metade

ou porque lhes soou estranho determinado elogio

ou porque tiveram que escolher entre dois compromissos

ou porque um amigo não respondeu da mesma maneira

ou porque um ponto negro apareceu sem avisar

ou precisamente pelo contrário de qualquer um destes contrários

as pessoas contam histórias


porque sim porque não ?

porque não lhes dói a alma

porque não têm medo

as pessoas contam histórias


ou porque são pessoas

ou porque são pessoas que contam histórias

que contam histórias porque são pessoas






segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

fita magnética












uma fita magnética a registar a tristeza

na pista interior da memória

na outra pista

uma imagem dos meus pés a salpicar

as gotas na margem do rio


e chega o mar


as sensações atravessam-me de um lado ao outro inundando

tudo o que sou enquanto me lembro

várias fitas magnéticas entrelaçam-se internas à cabeça

penetram na almofada à medida que registam

a minha vida misturada em várias pistas paralelas


as memórias são fitas magnéticas

são janelas viradas para o mar


e os pés continuam as pistas

o mar continua o rio

as cabeças continuam as almofadas


e o mar nunca deixa de chegar

nunca deixa de ser mar


e enquanto o mar atravessa o armário

todos os órgãos arrumados do meu corpo

lentamente devolvem a cabeça

aos tempos em que as memórias

não estavam ao contrário


aí nesse lugar onde finalmente

o mar continua a chegar

fundindo as costas do choro

nas costuras da alegria

aí nesse lugar podemos

finalmente todos um dia






segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

mergulho afundo




mergulho afundo

olhos dedos apalpo-me por dentro

avanço sem medir as raízes

a minha árvore medita no meio da floresta

atravesso o mundo nas galochas da infância

pés encostados aos mindinhos da inocência

embalados na descoberta alegre das coisas

a máquina do mundo abrindo as suas gavetas

de repente o que é isto o que se passa

uma massa esponjosa vermelho veludo uma tontura

a vida oferece-me o coração em primeira mão desde que há vida

deixo-me levar pelo susto ou embalo no extâse

a escolha é a mãe da experiência sussurram pirilampos

inseminando pequenas palavras luminosas no interior dos galhos

as minhas artérias ressentem-se revolvem-se recriam-se

eu agora em pé em frente ao coração

eu agora nú em frente ao coração

eu agora







sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

o mar sabe esperar






o mar sabe esperar na alegria








passaram séculos talvez milénios

enquanto a ave pousava devagar

as suas patas delicadas


o mundo pode abrir-se num segundo


a ave recém chegada observa

disfruta ama beberica

um sol posto na colina

das costas


que constantemente se viram

para acolher quem vem lá

quem nunca deixou de vir


o mundo é este infinito absurdo

esta beleza aterradora:


uma ave um tempo um sol


um mar de esperas traduzidas

na linguagem amorosa

do silêncio






sábado, 8 de janeiro de 2011

três safiras






uma semente de silêncio

destapa uma semente de luz



o fogo nasce no coração

dos olhos de um bébé

vive no umbigo de uma estrela

recém-nascida


todas as galáxias todas as mães

são árvores que herdaram

os ramos mais finos dessa luz

as folhas desse silêncio onde

cada grito é uma célula

a pedir alimento

cada átomo é um orfão

a fazer bolinhas de pão branco

a desenhar uma linha desde o miolo

da floresta até ao tesouro do lar

escondido na concha da mão


todos os seres humanos são orfãos de si mesmos

enquanto os ramos as raízes os abraços os beijos

enquanto a nossa copa o nosso corpo minúsculo

não entroncar no coração do gigante adormecido


as várias camadas do tempo conspiram agora a nosso favor


o gigante do amor estremece

reconhece três milagres três safiras e agradece

todas as vénias são preciosas


as várias camadas do tempo vêm pedir-nos para dançar

agora a nosso favor


o coração estremece




estremece







fotografia : miguel carrelo

três safiras (k)




Só aqueles que sabem olhar para uma árvore, para as estrelas, para as águas cintilantes de uma tormenta,

num estado de completo abandono, sabem o que é a beleza.

Este estado de visão REAL é o amor.



Krishnamurti



fotografia : miguel carrelo