sexta-feira, 28 de agosto de 2015

taça





que a vibração da vida encha bem a nossa taça
e lembremos as coisas que por nós não há quem faça








segunda-feira, 10 de agosto de 2015

tudo o que seria importante dizer





tudo o que seria importante dizer não pode ser dito
nem o mundo nos deu o poder do último sentido
se no futuro um erudito o intuiu nada nos disse
e nada nos podia dizer a não ser que no passado
soubémos subir escadas cada vez maiores e montanhas
escavar longos túneis furando as cores acres da terra
e mesmo o líquido azul do mar pudemos penetrá~lo
e a intensa luz do céu soubémos tapá-la
e o escuro da noite conseguimos iludir
mas os planos do mundo não os pudemos entender
feliz o amante que se rende ao amor sem precisar de supôr
feliz o filho que derrama sobre o pai a sua gratidão sincera
sem esperar que a espera traga o que a espera não pode trazer
feliz o pai que consegue cultivar a paciência nas trevas do coração
dobrar os joelhos sem temor perante o gigante da humilde devoção
felizes os praticantes da abstinência das muitas formas da razão
e todos aqueles que destilam as suas dores, mineiros, padeiros
enfermeiros ou doutores, no exercício de bizarra lucidez
que é vislumbrar a vida muito além do reflexo
de todo o bem e de todo o mal que se fez
feliz de mim quando rezo pelo nosso destino crú
sem sequer saber se o devemos cozer
feliz quando rezo sem sequer saber se algo há que valha a pena saber
feliz feliz feliz quando rezo e quando repito
feliz o amante que se rende ao amor sem precisar de supôr
feliz por saber que os planos do mundo não os podemos entender
e que tudo o que seria importante dizer não pode ser dito









quinta-feira, 16 de julho de 2015

floresta mergulhada





a floresta está mergulhada no seu próprio verde
intensa e calma como a maré do tempo
por dentro da terra selvagem que respira brota a suprema
delicadeza da flor humana e sopram raros teus segredos que circulam
em redor dos meus caules inquietos, rodas os punhos, as braceletes tilintam
parcas gramas de ouro junto às areias do meu corpo estendido 
onde luminosa me dorme a pedra de quartzo vibra no seio
da sua rosa sonhando com desertos que nunca acabam
muito além dos labirintos desenhados nas paredes da alma
trago vestido o meu traje de luzes mas tenho praticado o oculto
atrás da tábua pintada protego o peito da arena, sinto a fúria
das narinas ao vapor mas descanso porque os animais não podem ver-me
na verdade sou um secreto poema azul e verde não tenho é a coragem
de mostrar essa nudez intrínseca de longo emigrante saudoso
das suas aortas desbotadas; planto na terra o aroma dos teus caules
ainda verdes guardados em mãos fechadas por sussurros
e peço desculpa pelo recato, pela retracção pulmonar
em frente aos arroubos diurnos do quotidiano
oiço as montanhas que gritam a ignomínia da minha grandeza
a minha grandeza a germinar por entre as frestas rochosas da terra
minúsculas gotas que hidratam a lava, o lastro e o leite da humildade
colectiva derramando a massa humana espalmada em cada grama
em cada pedra em cada erva confusa pelo eco, o eco que pergunta
às entranhas se não conhecem os segredos celestes
como nós conhecemos as nossas palmas ainda imberbes
as nossas faces de meninos à espera do colo das mães
penduradas no embalo do espanto enquanto   
a floresta continua mergulhada no seu próprio verde
intensa e calma como a maré do tempo e por dentro da terra
selvagem que respira brota a suprema delicadeza da flor humana


















quarta-feira, 15 de abril de 2015

as flores quando ovulam




diz-me se o teu cavalo expulsa as crinas quando
 os malmequeres enlouquecem dançando nos campos 
quero ver-te rasgar os teus altos risos a galope
 sentir a força dos teus quadris envaidecidos
 pelas carícias da terra inebriada no teu cheiro
 porque eu também enlouqueço quando me chamas
 com essas cordas de seda hidratada no brilho das sereias
 enlouqueço nos reflexos das escamas de prata ou serão pétalas
 da deusa maior do amor que a tua presença enaltece
 tu, rainha alucinada das andorinhas que atravessam azuis
 sem fim à procura do poiso manso que uma vida, uma vida
 quer sempre descer para verter a sagrada luz primeira
 tu, menina madura sobre os ombros da pradaria
 olhando os secretos perfis das flores quando ovulam
 sentindo o rasto sensual das negras redondas formigas
 avançando sem nunca ter conhecido o medo
 tu, incrível imperatriz dos mundos que habitam as altas
 hereges almofadas nascidas nas caves da polpa corajosa
 tu, que a ferro, que a fogo, tu que como simples orvalho
 como simples aurora ressuscitas todos os dias no miolo
 da glória impronunciável que a luz derrama no tempo
 tu, serás o sagrado culminar da tua semente humana
 vibrando na pureza celeste, no intocado firmamento
 e da tua doce lâmina surgirá a hélice do vento
 e já feito cavaleiro o meu vulnerável
 e poderoso humano alento








quinta-feira, 26 de março de 2015

de cavalo a pássaro

ao herberto helder


A morte saíu à rua num poeta assim.
 Era um cavaleiro negro em cavalo branco, alma indómita, loucura adolescente.
 Outras vezes era uma árvore alada de galope equídeo,
 conheci-lhe as folhas à entrada do deserto.
 Todo eu guardava pedras em segredo e as pedras entrechocavam,
 ateavam a minha cidade ardida.
 As folhas olharam-me através da memória,
 o cavaleiro olhou-me através das folhas, eu era visto.
 A lança prateada rasgou-me os panos na fronte
 e a solidão não me cobriu até ao alto da cabeça:
 havia ramos e marcas na areia, ferraduras, esporas.
 Salvei-me nessa demanda, sobrevivendo aos versos que devorava à beira da noite.
Fiquei adulto sem nunca ninguém me ter compreendido a geometria das tripas,
 sem nunca ter sido desvirgindado senão por esses versos nocturnos
 que testemunhavam a minha realidade: 
estou vivo sobre o planeta e caminho descalço sobre o fogo.
 Lançaram-me esteiras, línguas de passagem.
A escola, os amigos, a família, e eu persistindo na pureza da minha orfandade.
Não sei se pertenço. Não sei se sou.
Talvez encontrasse aqui e ali algumas forças no peditório de um deus adormecido,
 esmolas que não chegavam para ser alguém que alguém pudesse reconhecer nos pergaminhos.
 Fui sempre estranho neste planeta.
 Só os ramos dessas rimas incertas e selvagens que o homem largava do cavalo sem descer do dorso;
 só essas côdeas como leituras a levantar fervura,
 só essas réstias me esqueciam as farpas de não pertencer,
 não ter igual a quem consagrar o meu precipício.
 Anos depois chegou o trabalho e o Sol rodou, rodou demasiadas vezes sobre a Terra;
 nesse balanço hipnótico e regular, o meu coração amadureceu com as tâmaras.
Um dia então, fui poeta.
Sem a copa da árvore alada a velar-me o negro, sem cavalo branco sobre as costas,
sem galope e sem lança, mas poeta de escada pequena já era assunto que bastasse.
 Deixei de sonhar com desertos e esporas
e as marcas da areia eram agora resquícios das conchas a decorar-me a pele.
Acabei por descer do podium
e encontrar o amor e a vida embebida em seres que me eram secretamente iguais,
 sem levantar a voz da tarde nem desenhar gestos esquivos sobre os ombros.
 O homem negro no cavalo branco permaneceu como até aí, invisível,
 habitando no interior do espaço e do tempo, no interior do som,
 coreografando a vida secreta das células dentro das folhas.
 Foi sempre de uma transparência vegetal, desde o primeiro dia à boca do deserto,
 embora eu só agora descobrisse que a sua carne não se via, 
agora que já não precisava da sua imponente figura
a sua lança que apontava a linha no fim do monte
onde escrevia: sobreviver é por ali, .
 Bastava-me beber os seus vendavais
e aquecer-me na sua loucura incólume, intocável:
 nesse intervalo os meus dias cresciam frutos na curva ascendente do declínio:
 brihantes de nutrição, prontos a decompôr-se na terra.
 Depois, com o planeta já embriagado pelas contínuas voltas
do astro a queimar o firmamento, a morte desceu à rua num poeta assim.
 Nesse dia em que seria natural que tudo se tornasse mudo
 e tudo se deixasse de ver,
nesse dia em que os próprios animais que habitam as entranhas da terra
se curvaram numa vénia à sua passagem,
 nesse dia cá em cima nos andares mundanos da vida
 quebrou-se sem querer a cerimónia da respiração e do silêncio.
Pequenos, crescentes tumultos não souberam como não nascer.
Espuma, espuma.
 Não era só a lírica loucura do homem que vinha por dentro das veias.
Também o seu sangue invisível desnorteava as orelhas agudas do ruído.
 Confundia os protocolos das colmeias,
atrapalhava as frágeis danças das abelhas
 quando as suas espirais de mel e pólen aspiram alimentar a humanidade,
 para o bem da humanidade, para o bem da humanidade.
 Nesse dia que a morte chegou à rua, as frases de circunstância
nesse dia os media, as editoras, os fãs a querer vencer o campeonato do afectos,
 nesse dia tudo isso e assim tanto, e eu como alguns de nós,
 alguns de nós que afundam os braços e os olhos atordoados na barulheira que a todos nos salpica: como pode o simples deslize daquele mudo monumento para o outro lado da existência
 fazer saltar tanto grito e tanta nódoa
pelas ruas que o branco mantinha tranquilo à distância de uma respiração quieta?
 Sabemos que não é produtivo combater a espuma. 
A espuma acontece e pousa por si. 
Afortunadamente, temos no nosso íntimo a força da onda. 
Afortunadamente temos a doce serenidade que o fundo do mar oferece, porque mergulhamos.
 E já que mergulhamos, saibamos enterrar a cabeça
 na igualdade fundamental das coisas que nos escapam.
 Como os grandes mestres do espírito,
há poetas que no meio da multidão parecem tocar as nossas cordas, em particular.
 Porque nesse ramo onde eles chegam, já entroncou a raiz da vida humana.
 E nessa curva muito além dos seculares anéis de significados e sentidos,
 somos todos pertença da mesma gloriosa humanidade indivisa.
 Finalmente sei que sou humano
 e hoje enquanto a arquitectura da vida abre as portas do dique
que atravessa as almas para o outro mundo,
 não choro nem solto grande mágoa
apesar de muito cavalgar esse amor ainda suado
dos versos que me salvaram as idades da vida.
Apesar de amar o colosso equíneo que me pariu através da sua arte germinal.
 Não choro pois tanto silêncio carregava no dorso
 que quase não tinha gravidade.
 Subiu à fase dos pássaros, disse uma sua absoluta amante.
Voemos.