sexta-feira, 30 de abril de 2010

gato, montanha




às vezes confundo as coisas e não sei

explicar porque é que um gato

pode ser uma pessoa e uma montanha

um sentimento

quer dizer

uma loucura milimetricamente saudável

com aroma de erva fresca




segunda-feira, 19 de abril de 2010

rio interior







já muita terra muitos prédios muitas rezas

muitas ruas países promessas ideias conversas

muito musgo muito fumo muitas certezas

taparam as margens do meu rio interior



e junto ao fundo arenoso em movimento

os meus peixes reclamam águas limpas







segunda-feira, 12 de abril de 2010

primavera



Reparei na porta fechada : fiquei lá dentro

Aprendi a calar, ensinaram-me

Mas depois da última carruagem do silêncio

Apareceu um pássaro : 1 pássaro !

O alvorecer do coração:

Olha, bebe!, disse ele

As maravilhas voaram dentro de grandes chávenas de loiça

Olha, bebe!, disse o coração

Era um pássaro

Era a infância

Dentro de grandes chávenas de loiça

Disse o pássaro








quarta-feira, 7 de abril de 2010

sei que estás aí


Sei que estás aí

E quero dizer-Te que estou aqui


Que peço perdão porque, por vezes, me distraio

Sinto-Te muitas vezes, nego-Te algumas, peço perdão

Amo-Te sabes não sabes Amo-te

Porque sim porque um raio silencioso

Rachou esta cabeça e anunciou a tua chegada

pousando uma pérola na polpa do meu coração

Agradeço tudo o que sei e mesmo o que não sei

Abdico agora para que possa ser rei


Quero-Te , Quero-Me contigo

A Vida enrolada numa paciência sem fim

guarda as suas minhas tuas missangas

mais fulgurantes mais verdadeiras

brilhando por dentro do peitilho sem nada nas mangas

Sim sei que preciso cuidar das minhas plantas

coragem honestidade humildade ousadia abertura criatividade gratidão

Enfim sei que preciso mudar de mim dentro de mim

Mas ouso dizer-te sem passado e sem futuro

Amo-Te e Honro-Me ao Honrar-Te


Reconheço as moléculas o ouro desta aliança

A voz sagrada que desfia esta História

Reconheço o Amor Reconheço-Me Reconheço-Te


Toco na coroa do peito e juro

quero encontrar-Te aprofundar-Te

oh nome Brilhando na Glória







20 de Janeiro





20 de Janeiro : vislumbre




Não posso dizer que compreendo

O corpo não cabe dentro do corpo


O ar cresce do interior, empurra para fora

o ar obriga o corpo a crescer

são espasmos, abanam a carcaça

são as ondas no mar alto, na minha cadeira, na minha casa

o corpo cresce e eu cresco e a cara abre-se em espanto perante:

a varanda do universo: o que é isto?


Choro convulsivamente, horas seguidas, em frente ao écran do cérebro:

o que é isto?


Rendo-me. Rendo-me. Deponho as armas todas, aos pés do coração

estou completamente nú, completamente rendido

completamente despido de qualquer pensamento

completamente completo, imerso

num altar-despojamento


Um rio inteiro de lágrimas inocentes percorre o caminho

dos olhos até à boca. Provo o meu próprio cristal

salgado


Tu, forma de luz, estás à minha frente, infinita, imperial

como a esfíngie no deserto


Eu sou um grande soluço, uma grande criança a desmontar as armaduras do adulto


Durante o cataclismo, subindo

por cima das avalanches e da lava que escorre nas minhas encostas

acende-se o grande letreiro da verdade universal: o Amor

usa as minhas fontes para falar : falar-me


Porque insistes nas tuas doses tão pequenas, nos teus entretenimentos

se é isto que tu queres ?


ISTO é um relâmpago que apaga todas as lâmpadas

apenas a luz central da vida permanece gigante acesa

a ofuscar as sombrinhas do medo e as mantinhas da razão


ISTO sou eu a esvaziar-me , eu a jorrar golfadas de choro

eu sem roupa sem argumentos sem decoro

sem saber o que fazer a não ser pedir perdão perdão perdão


ISTO é

o amor absoluto a rebentar todos os fusíveis

o amor absoluto a dizer coisas indizíveis


ISTO É

e eu SOU



e cai-me na boca a última gota

de pura Gratidão







* (Pintura -"O bicho do amor"-Dora Condessa)



terça-feira, 6 de abril de 2010

o meu pai





o meu pai partiu para outro mundo

foram nove meses para nascer

e nove meses para morrer


na sua lápide, a seguir ao nome, está escrito:

brilhando numa estrela



o meu pai agora tem o tempo todo

eu tenho momentos

tenho sensações de equipas contrárias a tomar conta de mim

tenho também movimentos de contabilidade emocional

reorganização dos ficheiros mentais. É muito, como dizer?, é um pouco

surreal

preciso de uma pausa, gotas, gramas, fios de silêncio

sim tenho momentos

de bastante intensidade. A fatia que mais me custa digerir

é feita deste pensamento: podia tê-lo compreendido mais

aproveitado mais a sua presença

às vezes sinto a culpa desse crime mas

fiz o melhor que sabia: ele também


tenho momentos

tenho boas lembranças tenho praias inteiras com ondinhas

que fazem cócegas positivas

ao desembrulhar a maré deste processo de fim princípio fim princípio

apesar de tudo, sinto alguma paz nas têmporas

consigo aceitar as coisas bicudas como elas se apresentam

cresci por dentro, Aprendi a olhar para o meu pai de outra maneira

para a minha mãe também a minha mãe mergulhada

numa dedicação inabalável, inultrapassável

acabou totalmente esgotada, esbatida

no corpo e na cabeça


depois das marés vivas, com os nossos braços lado a lado

recomeçou a nascer


o meu pai conseguiu realizar um grande desejo:

que tudo se harmonisasse à sua volta

foi duro de bem duro o curso do rio até ao momento da morte

parecia-me que a geografia do mundo estava toda desgarrada

talvez por causa da aflição


a partir do momento em que ele levantou o trem de aterragem

e subiu

seguiram-se coisas muito bonitas, minutos cintilantes, fotografias

de uma família mais unida. Mais unida


estávamos todos mais próximos, mais humildes, mais belos

como uma planta a ganhar uma nova flôr


o meu pai deve estar contente por essa grande obra de jardinagem


No velório, antes da romaria ao cemitério

a minha irmã reuniu a humanidade inteira, os quatro filhos

alinharam-se aos pés do pai

e ela tremeu palavras escritas com a boca :

tudo o que tinha recebido daquele ser maravilha;

de como um pai tinha contribuído para a formação do carácter de uma filha

foi impressionantemente bonito, simples e acertado


Eu falei do tamanho da minha sorte

por ter escolhido este pai, e esta mãe, falei do tempo

que precisei

para reconhecer algumas das suas grandes qualidades

foi bom prestar-lhe esta homenagem familiar

recheada de verdade e gratidão


Depois do funeral a minha mãe ofereceu um almoço à família, em honra do meu pai. Estivemos a brindar e foi curioso observar o bom ambiente, apesar da nostalgia. Lembrámos muitas das peripécias típicas dele, muitos episódios cómicos, outros doces, que rechearam a sua vida. Depois fomos para casa e continuámos nesse convívio saboroso.

Nessa altura também foi preciso decidir sobre a frase na lápide mas não encontrávamos solução. A minha irmã disse que ía sonhar e no dia seguinte teria a solução. Assim foi.


Bento Correia Condeça

05.04.1929 - 09.01.2010

Brilhando Numa Estrela


o meu pai partiu para outro mundo

acabou os seus dias na terra; sempre em casa agasalhado

na companhia e nos cuidados do seu grande amor, vinte e quatro horas por dia

e no momento de partir tinha à cabeceira

a filha mais velha e o filho mais novo.


Aleluia