sábado, 24 de outubro de 2009

PÉS CABEÇA









hoje de manhã pús

os pés no chão e senti

os fios da cabeça

todos trocados


um tricot de pensamentos com muitas malhas soltas

e buracos por onde facilmente passaria

uma chávena de chá muito quente

quando olhei para o tampo da mesa a sensação

já estava toda queimada


o corpo reage ao calor

os dedos fogem do fogo

e a cadeia das ideias tem imensos presos

a querer fugir dos pequenos incêndios

que reacendem a toda a hora

nos minutos em que me afasto do grande lago

central entre os mamilos




sexta-feira, 23 de outubro de 2009

MISTÉRIO



reparo nas pessoas que falam

nos cafés na rua são tão normais

nunca me tinha apercebido

que as pessoas podiam ser tão normais

não consigo explicar esta sensação óbvia

e absurda como qualquer mistério que se preze


o mistério da normalidade das pessoas


subo as escadas rolantes do centro comercial elevo-me

sinto-me vulnerável penetrado pelas outras vidas

que penduram as frases delas no ar à minha volta

a vida é tão estranha e tão familiar ao mesmo tempo

não passo disto: a vida é tão tudo ao mesmo tempo


caracóis convivem com teorias divinas automóveis

espirros jornais conversas almas telemóveis anéis

diários íntimos fezes beijos dentes segredos chapéus promessas

partos medos mentiras paixões crenças pernas braços há tantas

línguas tão diferentes em todo o mundo tantas maneiras de olhar

e sentir será que a palavra mistério será que a palavra normal existe

nos armários de todos esses países que conheço das fotografias ?


sim encontro-me ao mais baixo nível como as medusas do mar

consigo ser gelatinoso e baço consigo não ter mérito próprio posso também brilhar

apenas por ser da família apenas por ser irmão de todos esses seres que admiro

consigo num dia ou noutro sentir-me inexplicavelmente feliz

como a criança inconsciente que nunca deixei de ser a não ser

quando o medo ai quando os medos mostram os dentes não vejo nada

a não ser os dentinhos do monstro ou a pobre mas honrada cabana-catedral

da minha miséria imaginada a não ser as vestes do meu papão imaginado a força

o lado negro da força da imaginação

a trabalhar nos dias úteis

e domingos e feriados se for preciso

não digo que não




claro um banho ajuda muito

cada banho é um baptismo cada respiração

um bálsamo para a alma



há dias em que à noite

a banheira é o meu altar sagrado



quando acordo não me lembro de nada disto




quinta-feira, 22 de outubro de 2009

RINGUE








sem querer todos os dias planto uma árvore a floresta

cresce em densidade abre espaço nas minas

subterrâneas do peito posso extrair

minutos e metais preciosos, carícias

que hibernavam como grandes ursos solitários

quase gigantes mansos selvagens sonolentos amorosos

soterrados por camadas de cavernas transparentes

oh que mundos me encobrem outros mundos

de onde vêm todas estas formas de vida ?

afloram mindinhos delicados , pequenos sinos tranquilos

assomam a sua gentil cabeça ao mínimo som

vindo da flora do coração entre os mamilos


ontem aventurei mais dois passos pegadas

sensações gato das botas

na selva branca perigosamente virgem de O Amor

é como levitar por cima de um ringue de gelo

um chão de cristal onde dormem todas as nossas lágrimas

todas as nossas alegrias de humanos entregues

ao grande parto do mundo cheio de filhos folhas pequenos

insectos certezas doçuras dúvidas mãos entrelaçadas

fazendo juras em nome da grande bússola

que regula o grande elevador

sobe e desce os magnetismos cardíacos

as pistas por onde circula a tristeza e a loucura

perfurando o tempo em direcção à redenção

amorosa de O Amor


ontem aventurei mais dois pés deslizantes sem corrimão

oh capitão do meu grande lago desconhecido à beira-querida

oh grande lago mãe do mundo , quanto mais água mais espanto


esse ontem já não existe, dissolveu-se no momento

em que foi nomeado e no entanto

hoje sou um animal mais vivo mais rápido mais lento

mudo de nome todos os dias à medida de cada árvore

recém nascida


ontem hoje eu e o tempo


um funeral por cada minuto uma festa

um nascimento





quarta-feira, 21 de outubro de 2009

AUTOCOLANTES






podiam ser dois autocolantes duas dores emblema

colocadas logo abaixo dos ombros por cima de cada omoplata

como um cabide pendurado no meu próprio armário

estou a ficar vazio das minhas roupas


e não é o buraco de uma traça que me trespassa

que se passa ? são crostas

ou sílabas antigas que sinto soltas sobre as costas ?

alongo o braço espalmo a mão mas não chego lá

com os dedos e também não sinto comichão

descolam-se várias camadas de pronomes pessoais

separam-se da amálgama do mim próprio vigente

durante reinados sem fim e sem mágoa


retiro uma pétala de malmequer

bem me quer muito pouco nada

e julgo ouvir a flor

a verter um choro leve: será uma margarida ou uma frésia ?


a língua e os lábios atrevem-se e abrem o bico e eu digo

em modo corajoso assustadiço : eu sou eu que não sou eu


o eco responde para que serve um eu

uma cabeça que pensa eu uma boca que diz eu

se o corpo estiver maciço


em frente ao vácuo



? vestido de falésia





no meu peito

uma auto-estrada descarnada




sexta-feira, 16 de outubro de 2009

uma gota





todas as cadeias do mundo barras de metal

quadriculados corredores da morte cantinas cerradas

quilómetros de ordens de prisão secretárias guardas

sheriffs detectives não chegam para ilustrar

os páteos de pura ilusão

de liberdade


onde inconscientemente convivem

em modernos apartamentos conceptuais

as minhas moléculas de ADN


é por isso talvez por isso descobri agora

que as minhas cascatas se derramam ao mínimo toque

uma notícia mais lamecha um rapaz a passear o pai idoso

um homem a discutir absolutamente convencido da utilidade da sua razão

coisas supostamente más supostamente boas supostamente além

de qualquer juízo possível


nada faz sentido a não ser a grandeza de O Amor

a matemática a química a electricidade a magnética de O Amor


e basta uma gota um vestígio de gota

que se assome ao miradouro do meu crâneo

para toda a matéria corporal implodir as suas barragens

as mesmas que supostamente produzem energia


oscilo como uma pulga apaixono-me deprimo-me

canto como uma criança desafinada choro todo o meu caudal

escancaro todos os meus risos e nada faz sentido tudo É

a potência de estar vivo dentro da vida

o colosso de Ser

um espírito faz-se corpo abre um terramoto

as placas reajustam-se por entre os afectos espartilhados

todos os rios anseiam pelo som do encaixe a última peça do puzzle

nós todos humanos meninos ferreiros a fundir a fonte na foz

ouvir a voz dos rios a correr simples pela natureza das veias

a sabedoria minimal dos glóbulos e das árvores purificadas

pela ternura indestrutível da beleza

sim sou assumo

e assino a via lactea

com a minha liberdade o meu próprio sangue materno

puro branco

inadvertidamente



eterno




quinta-feira, 15 de outubro de 2009

PAI









o meu pai vulnerável

paralelo

à linha que entristece o horizonte

abre a boca cheia de palavras que não entendo

as legendas vêm numa língua estranha ôcre não sei

se os bivalves sobrevivem no deserto

o coração abraça o coração

sem mover um único músculo

um tigre nas gavetas da cabeça

fecha a razão e abre

a humildade


microscópicos serenos cristais de humidade

medram na mais banal das humildades

espreitando por entre as dunas

uma rosa de humildade concreta

amacia-me as pontas das unhas

a tempestade germina os ventos e as areias

um tigre morre um tigre nasce

à luz do mesmo golpe

o mesmo sabre


o meu filho sou eu

a olhar

o meu pai vulnerável

debita palavras molusco que desmancham

as costuras da razão

derretem chuvas abrem sulcos afluentes

sempre que há novos rios há novos cursos rasgados

no lençol que cobre a carne tenra


a vida a tremer no coração




quarta-feira, 14 de outubro de 2009

OLHOS





os meus olhos pousam beija-flor

nas pessoas que passam


não consigo compreender são corpos

que vejo são almas que sinto ?são

escapa-me algo me escapa como erva tocada

pelos dedos do orvalho


duas ou três lágrimas de espanto

regam-me os poros

escorre música nas maçãs ,adoça-me o rosto

sim o sal sublima o arco-íris e a dor

adormece nos pomares quando

os olhos abrem flor


duas ou três lágrimas de espanto

serão milagres


abrem crateras nas muralhas

delicadas que protegem


o Amor




terça-feira, 13 de outubro de 2009

O GENERAL







um pequeno vendaval irrompe

no meio da manhã


sinto muita agitação

nos interiores do corpo

por baixo da manta de pele

inúmeras fadas tentam em vão proteger-me

das farpas dos neurónios

em ataque descontrolado sob o imperial

comando de sua excelência O general O medo


seu exército vendaval não é hoje muito grande

é apenas um pequeno vendaval mas um vendaval

que se preze volta sempre

à casa materna


e se a água é mole ou a cabeça dura

é tema que não posso tratar agora enquanto

tenho as armas ainda por limpar

penduradas a tiracolo

foi tudo o quê ?


coisas de infância que afloram

disfarçadas de coisas de agora


uma princesa destituída ou não

cavalga nos ares do norte

e todas as minhas coroas de cavaleiro

da corte estremecem

quando me falta a chucha

ponho-me a combater

combater defender



o quê ?

nada


um vazio

icognoscível

irreconhecível

pelas máquinas de detectar

as mundanidades


as princesas devolvem-me à morte

dizem as fadas em surdina

ou então a mim próprio

que é a mesma coisa


no espelho mágico posso ver inúmeros reflexos

todas as minhas faltas

experimentadas À nascença


todo o meu grande General

a armar-me cavaleiro

dO medo


da morte


o mesmo repetido general

ainda que por vezes debaixo de outras capas

com menos garbo com menos estrelas

menos pergaminhos e brazões

menos impressionantes


mas nem por isso menos

eficazes


sobretudo quando atacando

em bando, como as formigas




segunda-feira, 12 de outubro de 2009

fragilidade





" nada do que se possa perceber

neste mundo iguala

o poder da tua intensa fragilidade "

e.e.cummings



sem querer liguei os fios

da fragilidade humana dentro de mim

entrei em contacto com essa rede filigrana

perturbante e bela

que atravessa o planeta mais profundo

de cada ser

à face da Terra

alguém inventou essa palavra irmãos

alguém inventou essa palavra todos

e com este circuito aceso nas veias do nosso corpo celeste

a minha própria fragilidade ascende ao rubro e eu

só me lembro de rezar uma montanha inteira

coberta em perdão tecido no avesso das encostas

somos todos irmãos meus irmãos

somos todos irmãos


aqui

nesta frase divinamente chorada em lágrimas de cristal sonoro

se encontra o ponto cardeal do coração


somos todos irmãos meus irmãos


ajoelho-me

sobre a frase

e coloco o ouvido rente ao chão :

a beleza e a tragédia fundem-se

num abraço maior que o tempo





em chegados ao silêncio do absoluto

o tudo absorve tudo


todos os conceitos sensações ruídos corpos almas ilusões


aí se revela uma única música

composta por uma única nota


inclui todas as frequências todas

as linhas vibrantes

dO Amor


As esferas fundiram-se

num ponto luminoso : o único ser

É


domingo, 11 de outubro de 2009

BARRAGENS









tenho as entranhas a sair-me

pelos poros e contraio-me

como um cavalo quando se empina

relincho em silêncio


não entendo esta dose equina

é alegria ou dor ? a escoar vontades antigas

pelos novos canais que abrem surpresas

caudais imensos , rios inteiros

vivos

que sobreviveram às barragens

tenho muitas no curriculum

o eu-castor labora muitos ramos de neurónios

ao mesmo tempo faz coisas paralelas

constrói barragens num corpo secreto

dentro do corpo


testemunho a obra do construtor espião espanto respiro

as minhas estruturas implodem sem dramatismos

e como a flor que irrompe no alcatrão

aí estou eu, quero dizer

um botão de mim próprio


é tudo novo


que estranho lindo


fico muito desajeitado

com aquela elegância grotesca

dos potros recém-nascidos

querem logo pôr-se nas patas


a fragilidade toca sempre nas raias da elegância

e entra

no tenro coração da beleza



sábado, 10 de outubro de 2009

MUNDO






o horizonte desdobrado

em duas linhas paralelas


o comboio transporta dias inteiros

de mercadoria emocional, séculos acumulados

uns por cima dos outros como crianças

em beliches, recheiam

os muros internos do tempo (( )) dentro das caldeiras

do cérebro

dois meses são dois milénios

duas rosas duas centenas de unhas-pétalas

macias sobre as faces

dois peixes fundem-se num

( aquário )


duas heras numa

( parede branca )


duas palavras numa

( loucura translúcida ,

perfumada , amorosa )


os peixes : são o seu aquário

as heras : uma parede unida-dividida

as palavras : são o seu próprio silêncio

a sua própria loucura fecunda na entrega


oh deusa

que me trazes junto à verdade

honro-te o branco das palmas

quatro faces inteiras

, cintilantes

luas de ouro recolhido

na coroa das palmeiras