sexta-feira, 23 de outubro de 2009

MISTÉRIO



reparo nas pessoas que falam

nos cafés na rua são tão normais

nunca me tinha apercebido

que as pessoas podiam ser tão normais

não consigo explicar esta sensação óbvia

e absurda como qualquer mistério que se preze


o mistério da normalidade das pessoas


subo as escadas rolantes do centro comercial elevo-me

sinto-me vulnerável penetrado pelas outras vidas

que penduram as frases delas no ar à minha volta

a vida é tão estranha e tão familiar ao mesmo tempo

não passo disto: a vida é tão tudo ao mesmo tempo


caracóis convivem com teorias divinas automóveis

espirros jornais conversas almas telemóveis anéis

diários íntimos fezes beijos dentes segredos chapéus promessas

partos medos mentiras paixões crenças pernas braços há tantas

línguas tão diferentes em todo o mundo tantas maneiras de olhar

e sentir será que a palavra mistério será que a palavra normal existe

nos armários de todos esses países que conheço das fotografias ?


sim encontro-me ao mais baixo nível como as medusas do mar

consigo ser gelatinoso e baço consigo não ter mérito próprio posso também brilhar

apenas por ser da família apenas por ser irmão de todos esses seres que admiro

consigo num dia ou noutro sentir-me inexplicavelmente feliz

como a criança inconsciente que nunca deixei de ser a não ser

quando o medo ai quando os medos mostram os dentes não vejo nada

a não ser os dentinhos do monstro ou a pobre mas honrada cabana-catedral

da minha miséria imaginada a não ser as vestes do meu papão imaginado a força

o lado negro da força da imaginação

a trabalhar nos dias úteis

e domingos e feriados se for preciso

não digo que não




claro um banho ajuda muito

cada banho é um baptismo cada respiração

um bálsamo para a alma



há dias em que à noite

a banheira é o meu altar sagrado



quando acordo não me lembro de nada disto




Sem comentários: